Imagem retirada do blog mairabacampos.blogspot.com

Texto postado na Revista FCBR

Gumercindo era o contrabaixista mais tímido que alguém já vira ou ouvira na vida…

E meu contrabaixo começou a falar, após minhas inúteis tentativas de tocar uma música de um jeito mais expressivo…
– Eu aqui irritada e você vem me falar em Gumercindo? E quem é o Gumercindo?
– Era um dos poucos amigos de infância do Tibúrcio.
– E quero lá eu saber sobre o Gumercindo?

Sem me dar ouvidos, o contrabaixo continuou a sua história:
– Quando criança, ele fazia xixi nas calças, mas não pedia de jeito nenhum para a “tia” deixá-lo ir ao banheiro. Por causa disso, voltava para casa sempre molhado. No início, a mãe até conversava com ele sobre isso, mas depois de três calças ensopadas e cheirando a cachorro, passou a ralhar com ele. Como mesmo assim a tempestade não cessava, ela mudou de tática e passou a dar-lhe uns bons tabefes. Mas o xixi não tinha medo de tabefes e nem de bordoadas, e ela acabou por desistir de consertá-lo de vez, não sem antes apresentá-lo ao tanque e ao sabão, para que lavasse suas próprias calças.
– E o que tenho a ver com isso?
– Com o tempo, a chuva dele passou, mas a timidez nunca…
– E…
– E aí, menina Duda, ao invés de reclamar, ouça o que tenho para te contar, e depois tire as suas conclusões! Para tocar é preciso saber ouvir!…

Fiquei muda com a petulância do meu caquético contrabaixo mas, em respeito à sua avançada idade, passei a ouvir – muito a contragosto – aquela história, certa de que poderia ser contada num momento menos incômodo…
– Foi tanto lava e seca de roupa que, ao virar rapazote, quase foi trabalhar numa lavanderia – experiência da infância molhada não lhe faltava – mas um dia veio o circo…
– Que circo?
– Um circo mágico, com palhaços, trapezistas, equilibristas… e uma banda… e uma bailarina…
– Tinha contrabaixo?
– A banda ficava num canto quase escondido do picadeiro: violino, acordeom, percussão e contrabaixo acústico.

Fiquei a imaginar o tal circo, enquanto meu contrabaixo dava asas à minha imaginação:
– Todos, eufóricos, esperavam pelo início do espetáculo. Só Gumercindo prestava atenção naquele instrumento grande e gordo na penumbra do picadeiro. A música começou, misteriosa e enérgica, a dar o clima de suspense necessário ao espetáculo.

E o som do contrabaixo se apossou dos olhos e dos ouvidos do tímido Gumercindo, que nunca tinha ouvido alguém tocar um instrumento de verdade na vida. Até então, ao vivo, ele só conhecia mesmo os tambores de lata de leite e os chocalhos de feijão que a Maria dos Quindins, empregada da casa, improvisava para acalmar a peraltice dos pequenos, junto com os quindins do seu apelido.

O violinista cigano – de olhos bem negros e roupas típicas – tocava seus arabescos e trinados, e envolvia a plateia em agudos e melodias românticas, mas Gumercindo nada percebia, porque estava totalmente hipnotizado pelo contrabaixo…
Bem pelas pupilas do público passavam mágicos, palhaços e trapezistas, mas todos ficavam a milhas de distância do contrabaixo e dos sonhos de Gumercindo.

De repente, o contrabaixista passou a tocar com uma varetinha igual à do violinista, e uma melodia fosca e linda, grave e intensa saiu do contrabaixo, seguido pelo timbre melancólico do acordeom… Um tango talvez, quase tango…
A luz foi então diminuindo, diminuindo e, de um círculo de luz com contornos azuis e violeta, um cavalo adentrou o picadeiro com a mais bela moça que Gumercindo já vira.
Era a bailarina!…

E os arabescos da bailarina, ah, esses o Gumercindo viu!
E o cavalo lá, impassível, enquanto a bailarina ondulava, levantava e pulava sobre suas costas, para delírio da plateia, que mal respirava a cada salto, e do Gumercindo que, com os olhos marejados, enxergava um arco-íris de luzes e lágrimas a cada movimento da sua bela bailarina, até que ela ficou de cabeça para baixo, e seus olhos se cruzaram com os de Gumercindo, que fechou os seus e, quando acordou, estava em casa, com todos aguardando ansiosos que ele recuperasse os sentidos, enquanto o médico dava-lhe sais…

– O Tibúrcio também estava no espetáculo?
– Sim, e foi ele quem primeiro acudiu o Gumercindo, depois que ele desfaleceu com o olhar verde-intenso-fatal da Zíngara…
E continuou:
– O circo ficaria na cidade por mais três espetáculos. Gumercindo nunca teve coragem para falar com Zíngara, mas fora a todos os espetáculos, e sentara-se sempre no mesmo lugar, à espera do olhar de Zíngara, que sempre vinha ao encontro do seu, para dançar o tango quase tango, retina a retina…

No último espetáculo, resolveu que iria brigar com a sua timidez, e enfim falar com Zíngara após a apresentação. Quem sabe ele não a raptava ou quem sabe ele mesmo não fugia com o circo? – pensava ele, enquanto se refugiava no seu conto de fadas às avessas, em que a mocinha ficava na cidade ou o mocinho fugia com o circo.

E a melodia fosca e linda, grave e intensa do contrabaixo, acompanhada pelo timbre melancólico do acordeom recomeçou a enfeitiçar o ambiente… Tango que te quero tango, quase tango…
E mais uma vez, a luz foi diminuindo, diminuindo, e o círculo de luz com contornos azuis e violeta trouxe o cavalo com a só sua bailarina, que fluía, melíflua, pura lua…
E Gumercindo, inebriado em arco-íris e sonhos, esperou pelos olhos da sua bailarina pela última vez… Fogos de artifício estouraram de repente. Muitos fogos.
O cavalo dá um pinote inesperado, corre assustado, e derruba a bailarina, que de cabeça para baixo cai, e nunca mais se levanta… Silêncio, tumulto e gritos na plateia.

Gumercindo, aos prantos, só conseguia balbuciar uma coisa repetidamente quando conseguiu, no meio do tumulto, chegar ao picadeiro: “Me venda este contrabaixo… por favor… me venda… o contrabaixo…”.
– Nossa!… E ele virou contrabaixista?
– Sim, em homenagem à bela Zíngara, razão dos seus olhos e desatino do seu coração, ele se tornou contrabaixista, bem antes do Tibúrcio, até que sua morte precoce o separou do contrabaixo e o uniu em estrelas à sua Zíngara…

– E o contrabaixo dele?
– Sou eu, que fui parar na coleção de contrabaixos do Seu Sinhozinho para, só muito tempo depois, ser trocado por um fusca pelo Tibúrcio.

– Mas por que você me contou esta história?
– Porque temos que perder um pouco da timidez para conseguir algumas coisas na vida, seja para fazer uma homenagem, ou mesmo para tocar uma melodia…
– Não entendi…
– Você não consegue tocar aquela melodia, menina Duda, porque está tímida com os seus próprios erros… Para tocar, é preciso saber ouvir o coração…Decida como você quer tocar, e lute pela melodia que há em você!… Como o Gumercindo lutou…

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Segredos Contrabaixísticos de Duda Pum-Pum-Pum Ronc-Ronc by Voila Marques is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas License.

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