Postagens de junho, 2011


– Querido, letra “P” de papai, de papagaio, de pipa, de professor…
– Mãe, “p” de pato, de pé…
E a irmã dele, até então quieta e só prestando atenção, interrompe a mãe e cochicha ao seu ouvido:
– “P” de porra, né, mamãe?
(minha filha, aos 4 anos)
– Mamãe, o que acontece com o corpo quando a gente morre?
– O corpo fica na terra e a alma sai, querido…
– E pra onde ela vai?
– Vai conversar com Papai-do-Céu…
– E o que ela vai conversar com ele?
– Cada alma tem a sua conversa com ele, meu filho…
– É… regras de morrer são regras de morrer, né, mamãe?
(meu filho, aos 5 anos)
– Você fez cocô hoje?
– Não. É que meu cocô tá em falta…
(meu filho, aos 6 anos)
– Mamãe, cocozinho faz bem pra barriga porque ela vai “disminuindo”, né?
(minha filha, aos 5 anos)
– Mamãe, por que a sua barriga fez esse barulho?
– Ela está fazendo barulho porque o estômago está trabalhando. A comida vai ser dissolvida, virar vitamina e ir para o sangue. O que não servir vira cocô e xixi.
– Ela vai virar vômito?
– Assim, a comida não é aproveitada e não vira vitamina.
– Eu já comi biscoito com suquinho, e ele nem quis ir pro sangue e nem foi prum lado e nem pro outro. Aí, depois eu vomitei!…
(minha filha, aos 5 anos)
Durante o banho, a mãe chamou mais uma vez o suvaquinho dele de “asinha”…
– Levanta a asinha para a mamãe lavar!
– Não é asinha, mamãe! É braço, entendeu? Repete: braço, braço!
– Pode ser braço, axila, suvaquinho, mas para sua mãe, o seu braço vai ser sempre asinha.
– Mamãe, eu queria ter asas de pterodátilo, um rabo de tiranossauro rex e uma cabeça que não é de triceátopo, é de… pode escrever qualquer nome… tiranossauro rex! Só não pode escrever pterodátilo, porque ele tem uma cabeça muito feia!…
(meu filho, aos 6 anos)

Quase todo começar a fazer alguma coisa tem seu lado bom e seu lado ruim, ainda mais quando esse começo implica em estudo.
Se até para namorar a gente tem que “estudar”, aprender a conhecer o outro, na Música isso não é diferente: estudar um instrumento muitas das vezes pode ser encarado como um namoro sério, e isso torna o caso peculiar, exótico e esquisito, quase uma doença crônica.
Quando a gente resolve tocar contrabaixo, as pessoas estranham no início, e depois começam a se conformar com a idéia, mas só param mesmo de implicar, quando a gente passa a tocar músicas inteligíveis, e bem. Só que isso demora…
Para quem estuda um instrumento, todo dia é um começo, todo dia é um estudo, e todo estudo é dia de implicância mútua, porque as exigências crescem de acordo com o nível técnico e musical do instrumentista, e nunca deixam de existir.
O senso crítico deveria ser mais um sentido do músico, junto com a audição, o tato e a visão, pois é a partir dele que o músico ouve melhor, vê melhor, sente melhor o instrumento e toca melhor…
Gostaria de contar para vocês que estudar contrabaixo às vezes é chato sim, assim como estudar qualquer outro instrumento, mas que também é possível atenuar a chatura de um estudo com pequenas modificações em sua rotina.
Tédio instrumental a longo prazo pode estar associado à baixa-estima, à falta de objetividade do estudo ou à falta de criatividade do músico.

Morri de amores pelo contrabaixo depois de assistir a uma aula, o que prova que amor à primeira vista existe, e como estou com ele até hoje, isso prova que amor à enésima vista também existe.
Não conheço nenhum contrabaixista cego, mas acho que esse amor independe de vista. Para mim, bastou ouvir o som do contrabaixo, porque se eu fosse um pouco mais coerente com meus olhos, não escolheria um instrumento tão maior que eu.
Meu consolo é que o piano e a harpa também são maiores do que quem os toca.
Tá certo que eles não dão o trabalho de carregar todos os dias, mas pior do que carregar contrabaixo todos os dias é montar, desmontar e carregar bateria todos os dias. Contrabaixo pelo menos não precisa montar nem desmontar.
Na realidade, com o passar dos anos o contrabaixo é que vai desmontando a gente…

A gente começa aprendendo a tocar com os dedos e – embora isso possa parecer até óbvio, já que não dá para tocar com o nariz- nas orquestras o ensaio às vezes é tão monótono, que dá vontade de tocar uma nota ou outra com a orelha, e conheço quem faz isso, e bem.
Obviamente, você não precisará acrescentar a orelha ao seu estudo diário – somente a prima audição, uma provável analfabeta musical – mas, certamente, você começará a estudar contrabaixo sem aquela varetinha chamada arco: as primeiras aulas e os primeiros sons são feitos só com os dedos.
Bem, todo aprendizado de contrabaixo tem o tal do pizzicato, que mais parece nome de molho. Huumm, macarronada com molho de pizzicato! Pizzicato – azeitonas, azeitonas – notas musicais, música – fome… A vida é cheia de analogias e interpretações…
Pois é, mas o tal do pizzicato nada mais é do que tocar beliscando a corda com os dedos, e você ainda vai ter que encarar o estudo do tal do pizzicato sonhando com o tal do macarrão… Em compensação, ao fim do estudo (e troncho de fome) você ainda pode dar uma esnobada e fingir que já está tocando o solo da 1ª Sinfonia de Mahler:
• (Solo da 1ª Sinfonia de Mahler em pizzicato, uma oitava abaixo:
ré corda solta- mi- fá- mi- ré/ ré- mi- fá- mi- ré/
fá- sol- lá/ fá- sol- lá/
lá- si bemol- lá- sol –fá- mi- ré/ lá- si bemol- lá- sol –fá- mi- ré
lá- lá- ré/ lá- lá- ré))
Um dia, você até poderá tocar essa sinfonia na orquestra, mas antes você tocará – e muito- esse trecho nos concursos para orquestra, e como ele é um dos pesadelos dos contrabaixistas, passará a ser seu pesadelo também. Na música, os sonhos são contagiantes e os pesadelos, contagiosos.
O solo do Mahler começa com a orquestra em silêncio e só o tímpano levando o contrabaixista para a forca assim: ré-lá-ré-lá.

Após algumas aulas fazendo um “estágio” só em pizzicato, aí você é apresentado ao arco e seu estudo continua com as malditas e delinqüentes cordas soltas.
O som delas é sempre motivo de curiosidade entre os vizinhos, que não sabem se você tem um boi ou se tem um navio em casa, coisinhas perfeitamente viáveis dentro de um apartamento, ainda mais quando vindas da imaginação criativa dos seus vizinhos.
Encare positivamente as cordas soltas já que, frente aos seus vizinhos, elas farão você se sentir um rico criador de gado ou mesmo um poderoso armador grego, coisas que como contrabaixista você jamais será.
Mas sonhar alto faz bem ao contrabaixista, já que como um rico criador de gado, você chegará, no máximo, a tocar numa feira agropecuária e, com sorte financeira (para esclarecer bem), numa banda sertaneja famosa.
Como um poderoso armador grego, você poderá tocar na banda de um transatlântico, quem sabe com o Roberto Carlos, não é mesmo? Mais isso é só no futuro porque, caindo na real, entre as quatro paredes do seu cafofinho, só dá mesmo para ser capitão do navio Bambalalão… Avante, cordas soltas!
• (Bambalalão com arco: sol- sol- sol- ré- ré- sol- sol- sol- ré- ré- sol- sol- sol- lá dedo1- lá- lá- ré- ré- ré- sol)
Daí, você começa a intercalar corda solta com corda presa. O contrabaixo e você ainda são duas crianças e têm um mundo contrabaixístico pela frente…

Então começam os estudos de graus conjuntos, as famosas escalas, que nada mais são do que uma escada de notas, em que cada uma delas fica num degrau, seguida da sua nota vizinha do andar de cima na subida – de minisaia- e da sua vizinha do andar de baixo na descida – com o rolo de pastel.
O estudo de um instrumento por vezes é tão repetitivo, que de certa feita flagrei um vizinho meu assoviando o início de um concerto de contrabaixo e – não sei como- era exatamente o que eu estava estudando há meses!
Contrabaixo é cultura, mas o contrabaixista é sempre um ser carente de reconhecimento.
Ao contrário dos pianistas, sempre idolatrados e quase sempre exibidos, os contrabaixistas costumam se esconder atrás do instrumento. Só saem de lá para comer e beber, e justamente na hora em que o estudo começa a ficar um saco, como qualquer ser humano normal faz. Bem-vindos ao clube!
A falta de estímulo para ser contrabaixista ou músico às vezes bate, daí a gente pensa: vou fazer o quê? Improvise uma solução, mas não desista da música!

Mas tem dia que você está lá, p. da vida, quase atirando o contrabaixo pela janela, quando de repente se dá conta de que uma cidade sem grades quase não existe, e que isso seria inútil.
Aí, você resolve parar de estudar, largar tudo e botar o contrabaixo na parede.
Uma das grandes vantagens de tocar contrabaixo é que, ao invés de você ficar de castigo porque não quer estudar, quem fica de cara para a parede é ele, enquanto você vai passear!
Depois que você coloca o contrabaixo de castigo na parede, a porta do armário está aberta com aquele espelhão todo, aí você passa e olha, repassa e re-olha, trepassa, treolha e, corroído de remorsos, sente saudades até das cordas soltas.
Além do pizzicato, das cordas soltas e das cordas presas, das escalas, tem também as notas ligadas e separadas, com as chamadas arcadas:
• (sol –lá – si – ré –ré – si- dó)
A partir daí você pode voar nas notas e tocar até a Asa Branca.
Ou estudar os “saltos”:
• (sol – si – sol – dó – sol – ré)
E andar a cavalo com os saltos no Ponteio Acutilado ou num galope.
Aí, ao invés de você mandar o contrabaixo passear sozinho, vocês viajam juntos.
Depois tem o estudo dos intervalos, que são as distâncias entre as notas: terças, quartas, quintas, etc. Sem feira, sem sábado e sem domingo, por favor.
• (mi – ré – dó –mi- ré – dó – mi)
E você descobre que os intervalos grandes ou pequenos, quando feitos com o ouvido e o coração, perdem o tamanho e ganham dimensão e alma…
E que deles pode soar até um Carinhoso…
Ainda têm estudos em duas cordas, em três, nas quatro, que até parecem joguinhos de coordenação motora.
• (ré – sol – si – ré – sol – si)
E descobrir que um simples joguinho pode terminar no Brasileirinho, um diminutivo que é grande em qualquer instrumento!…
Uma solução para dar um colorido extra aos estudos de vocês é chamar os seus colegas para tocar junto.

Daí o namoro crônico com o contrabaixo evolui para o casamento, e unidos na riqueza de notas musicais e na pobreza de notas materiais, na alegria das apresentações e na tristeza dos estudos, você se dá conta de que o segredo da música bem estudada é uma alquimia individual de persistência, criatividade e talento para descobrir coisas novas.
Todas essas agruras contrabaixísticas são solucionáveis e normais, até porque anormal mesmo foi você resolver tocar contrabaixo acústico. Um famoso violoncelista brasileiro dizia que “tocar bem é tornar natural aquilo que é completamente antinatural.”.
E, como vocês sabem, para todos os males tem frase de mãe. A da minha mãe é assim: “Dê tempo ao tempo para ele ter tempo de ter tempo!”.
E um bom estudo para todos nós!

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