"How can I play with this stringless Cello...?" - pintura feita a giz de cera por Satheesh Paul

Texto postado na Revista FCBR.

Meu contrabaixo amanheceu cantando feliz, e estranhei tamanho entusiasmo matinal…

Depois, me lembrei de que, nos últimos 20 anos, ele só tocara na orquestra com o Seu Tibúrcio, mais precisamente durante todas as manhãs, de segunda a sábado.

Desconfiei que estar comigo significasse para ele viver em férias musicais e só fazer passeios bem amadorísticos…
Concluí que, enquanto luto para estudar e passar para uma orquestra, ele só quer saber de se abanar com a partitura!…
Êta contrabaixo mais vagabundo esse que eu fui arranjar!…

Preferi não pensar nisso tudo, para não ficar deprimida. Resolvi aproveitar o bom humor dele, e protelei um pouco o estudo, jogando conversa fora:

– Você hoje tá mais italiano que Bottesini, heim?
– São as boas lembranças, menina!
– E que boas lembranças o trazem tão cantador e encantador assim hoje?

– Ô Duda, já que você falou em Bottesini, me lembrei de Dragonetti, de Marcello… Sabe, não gosto mais de orquestra, mas adoro um solo bem tocado!… E, por falar nisso, quando é mesmo que vamos sair dos pum-pum-puns e ronc-roncs e dessa monotonia dos métodos de contrabaixo, heim?
– Erga as mãos para São Nico, porque o dia em que eu estiver tocando bem alguma coisa, seus dias sem orquestra acabarão!…

– Ah, mas nós podemos tocar bem só em casa, e eu bem que posso boicotar a sua ida para uma orquestra, ora!
– Como assim??
– Fazer como um amigo do Tibúrcio nos ensinou…
– Vai falando antes que eu resolva te colocar na vitrine daquela loja de novo!…

– O Tibúrcio tinha um grande amigo na orquestra, o Donatto, um italiano mafiosíssimo… Os contrabaixistas sempre ficam amigos dos violoncelistas. Acho que os violoncelistas gostariam de tocar contrabaixo e os contrabaixistas têm uma quedinha pelo violoncelo…
– E o que o tal do Donatto tocava?
– Oficialmente, ele tocava violoncelo mas, na prática, ele tocava muita nota fora, e de propósito, só para testar os maestros. Se fosse um bom maestro, ele ainda continuava a tocar uma nota ou outra fora, só para protestar à sua maneira contra os maestros.
– Por quê?
– Porque ele não suportava mafioso concorrente…
– Sério?
– Sim, e quando o maestro era ruim, aí é que ele tocava nota fora a torto e à direita, para provar que quem mandava lá era ele. Só que ele só mandava mesmo eram as notas ruins, e como maestro ruim nunca notava as notas fora, aí sobrava para o resto da orquestra aguentar as peraltices do Donatto…

– Mas nunca tentaram mandá-lo embora?
– Ele era um dos músicos fundadores da orquestra sem contar que, numa época de vacas magras orquestrais, ele ia ensaiar todos os dias, enquanto muitos colegas ficavam em casa, por causa da falta de salários. E para o bota-fora dele, o fundo de garantia atrasado da orquestra teria que dar uma festa!
– E…
– E aí que a administração da orquestra se sentia endividada por tamanha dedicação do Donatto e, endividada por outros motivos também, passou a fazer vista grossa para todas as estripulias dele…

– E, além de tocar nota fora, o que mais ele fazia?
– Como um bom italiano, virava-se sempre para trás, só para ver as pernas da Eufrásia, que ficavam abertas para tocar violoncelo. Não contente com isso, ainda beliscava a parte de trás de todas as musicistas que entravam para orquestra, numa época em que não se falava sobre o tal do assédio sexual. Depois, ainda dava uma nota para a candidata!…
– E ninguém fazia nada com o colecionador de beliscões?

– Bem, nunca soubemos o que aconteceu na sala dos músicos no dia em que o Donatto e a Gardênia ficaram sozinhos. Ela era uma violinista grandalhona, feia e filha de alemães. Tinha entrado para orquestra há bem pouco tempo. Dizia-se, à boca pequena, que o teste para entrar para a orquestra era mais fácil que passar pelo teste do Donatto, que tinha uma mão bem pesada.
– E aí?
– Ninguém viu nada, mas alguns disseram que ouviram uns gritos abafados vindos da sala e, logo depois, viram a Gardênia sair ajeitando a saia, enquanto o Donatto demorou a sair de lá.
– …
– Ninguém entrou na sala, com receio de constatar que o Donatto, além de feio daquele jeito, poderia o ser também por inteiro. E, de repente, lá saiu o Donatto, mancando e curvado, quase a cheirar o chão, gemendo e a segurar a sua própria vítima completamente nocauteada, enquanto a Genoveva, babando vingança, perguntava para ele qual era a nota do beliscão que ele tinha acabado de levar da outra…

– Uau!
– Depois desse dia, ele só cantava a mulherada, mas nunca mais colocou a mão em nenhuma, só os olhos.
– Que bom, né?
– E mesmo já velhinho, continuava a ser inconveniente com as suas cantadas, mas ninguém o levava a sério. Dizem que ficou traumatizado e fora de combate desde o amasso da Gardênia.

– Nossa… Mas o que você aprendeu sobre boicote com o Donatto?
– Tinha entrado um violoncelista novo na orquestra, para ser chefe de naipe…
– Ele fez o teste com o cara também?
– O Donatto não levava jeito para essas coisas, mas ele e o Malaquias não se bicavam de jeito nenhum. As línguas mais ferinas diziam que o Malaquias é que levava jeito, e que não gostou de ser rejeitado.

– Nossa…
– O fato é que o cara começou a perseguir o Donatto e a reclamar das notas desafinadas dele no meio dos ensaios. E as reclamações se intensificavam quando o Donatto se virava para ver as pernas abertas da Eufrásia. Um dia, o Malaquias teve um ataque de pelancas quando o Donatto olhou para o decote sem recheio da Efigênia, logo depois da hora do café, o que podia, por si só, ser considerado motivo de indigestão – e sem remédio -, menos aos olhos míopes e vesgos do Donatto e ao ciúme do Malaquias…
– E o que aconteceu?
– Os dois começaram a discutir no meio do ensaio, com o Malaquias a reclamar o tempo todo das notas erradas do Donatto, que passaram a virar uma metralhadora de nota fora.

– E o boicote?
– Chegou o dia em que o Malaquias foi solar com a orquestra o Concerto para Violoncelo, de Lalo. Ninguém sabe como, mas o Donatto descobriu que o Malaquias usava uma “cola” no violoncelo, feita com giz, para não errar as passagens mais comprometedoras.
– Hum…
– Pois é, na noite do concerto, teatro lotado, o Donatto deu um jeito de apagar as marquinhas de giz, e passar todas elas mais para o fim do espelho, exatamente quando o violoncelo do Malaquias estava deitado no chão, na penumbra da coxia, minutos antes dele adentrar o palco para fazer o solo.
– E onde ele estava?
– Tinha ido ao banheiro, chance de ouro do Donatto. O Malaquias foi ao banheiro antes, mas cagou mesmo a música foi na hora do solo. De tão ruim, ele foi despedido logo após o concerto.

– Ah, então você vai boicotar a minha prova só porque eu faço o mesmo? Você vai mesmo ter coragem de apagar as marquinhas que coloquei em você?
– Sabe, estou meio cansado dessa pintura indígena, menina!
– E eu estou quase me sentindo ameaçada… Mas o que aconteceu com o Donatto?

– Ficou ainda muitos anos na orquestra. No dia em que ele morreu, a orquestra fez – a pedido dele – não aquele minuto de silêncio usual, mas sim um minuto de bagunça, com todos tocando o que queriam ao mesmo tempo. E o maestro dessa vez notou que o som da orquestra estava diferente!

Meu contrabaixo encerrou o assunto e voltou a cantarolar à italiana, talvez numa homenagem às suas próprias memórias e histórias…
E eu fiquei aguardando a próxima, não sem o receio dele fazer uma autobiografia e contar que eu uso marquinhas no contrabaixo para estudar…

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Segredos Contrabaixísticos de Duda Pum-Pum-Pum Ronc-Ronc by Voila Marques is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas License.

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