"Homem Idoso", de Guilherme Roemers

Texto postado na Revista FCBR.

Quando comecei a tocar contrabaixo, o Seu Tibúrcio já era um contrabaixista bem velhinho de orquestra, mas eu mesma não cheguei a conhecê-lo.
Quem me contou essa história, entre uma passada de resina e outra, foi meu contrabaixo.

– Nossa, você conheceu tanto contrabaixista!
– Nem te conto, menina!
– E como ele era?
– Fiquei com ele nos últimos vintes anos dele na orquestra, depois que o Seu Sinhozinho resolveu se livrar da coleção de contrabaixos dele e me trocar – justo eu – por um fusca velho com o Tibúrcio. Cheio de manias e ranzinzices, implicava com tudo e todos… Ele era uma Dona Marieta, só que de casaca, sabe?

E meu contrabaixo, inspirado pelas lembranças, continuou:
… Ele sempre chegava duas horas antes do ensaio começar.
Nunca soubemos o exato porquê disso, mas as más-línguas orquestrais diziam que ninguém o suportava em casa, até que um dia ele passou a morar sozinho.
Com os anos, desenvolveu um ódio mortal pela ex-mulher e parece que a recíproca era mais que verdadeira.

Dos filhos, ficou a distância cada vez mais distante, acentuada pelo fato do pai morar tão longe – duas quadras físicas, a milhas de esquecimento mútuo e pertíssimo da praia, que ele não frequentava desde que os filhos eram pequenos, por conta dos ensaios matinais da orquestra.

Talvez nem ele mesmo se suportasse em casa, mas o fato é que resolveu a solidão constante fixando moradia no bar em frente de casa, local em que almoçava após o ensaio, bebia após o almoço, lanchava após a bebida, jantava após o lanche e bebia, até que, a passos pra lá de trôpegos e cansados, voltava para casa.

Nós só nos víamos na orquestra. Eu ficava na caixa, aguardando que ele me tirasse de lá, religiosamente duas horas antes dos ensaios, de segunda a sábado, e dos dias de concerto. Aos domingos, ele ia estudar o sabor da cerveja durante o dia inteiro, e eu tirava para dormir um sono sem pesadelos com contrabaixistas e maestros.

Convivíamos durante cinco horas diárias, às vezes bem mais que isso, principalmente quando tocávamos concertos de piano na orquestra, e os pianistas davam bises de cinco longas músicas, para desespero dos músicos que perdiam a condução usual para casa, e para delírio do público – que sequer pensava nos músicos, e nem devia saber que a maioria morava bem longe -, e deslumbre do pianista, que viajava nos aplausos, enquanto se lixava para os músicos, e para o público a cada vaidosa nota tocada com os olhos grudados em seus próprios dedos.

Eu mesmo só perdia a paciência quando isso acontecia, mas Tibúrcio perdia a saideira usual de todas as noites menos aquela, o que o deixava mais casmurro e resmungão.
Talvez eu tenha sido o melhor amigo dele nos últimos vinte anos, depois do amigo copo de cerveja, é claro, e cheio…

– Que triste isso… – falei.

Nesse momento, meu contrabaixo quase chorou, mas logo voltou às suas lembranças:

Durante os seus cinco últimos anos de orquestra, Tibúrcio começou a colecionar manias uma atrás da outra, muitas que geravam chacota dos colegas da orquestra, mas ele nem se importava. Vivia cada vez mais em um mundo à parte, onde só cabiam as suas esquisitices.

Ele nunca foi um talento de contrabaixista mas, com o caminhar dos anos, passou a cacarejar as notas no contrabaixo com um som horrível e sofrido, até que se especializou em cacarejar com o arco somente na ponta. Acho que ele queria comprovar que elefante cacarejava…
Esse, digamos, desenvolvimento instrumental dele, quando não acompanhado dos tais gracejos e comentários maldosos, passou a ser seguido por olhares constrangidos entre os colegas. Quando ele incorporou de vez o seu incômodo modelito de tocar, todos então passaram a fingir que nada acontecia. Felizmente, ele não deixou discípulos e nem fãs da técnica.

Daí, começaram as implicâncias dele com a estante de música. Ele a puxava só para si, e o colega de estante que tentasse adivinhar ou decodificar à distância o que estava escrito na partitura.
Com isso, se intensificaram as intrigas e futricas no seu naipe de contrabaixo, e os colegas então passaram a fazer revezamento para tocar na mesma estante que ele até que, no dia em que ele colocou a estante toda exatamente na sua frente, ninguém mais quis dividir a estante com ele.
A partir daí, ele passou então a se sentar sozinho na última estante, olhos nos olhos de sua estante de estimação e bem distante dos afortunados ouvidos alheios pouco chegados a cacarejos e rosnados de contrabaixo. Um dia, sem sequer se dar ao trabalho de dizer o porquê, passou a se posicionar nos concertos bem afastado de todos, quase a cheirar a cortina do teatro. Um excêntrico entre os excêntricos…

Por essa época, também começou a carregar no bolso da camisa um papel, que passou a ler, vez por outra, antes dos ensaios. Um número de telefone? Uma lista de compras de supermercado?

A mania foi tomando corpo e, em pouco tempo, o misterioso bilhete passou a ser lido todo santo dia antes dos ensaios. Isso está com cara de bilhete de amor… Mas será? – conjecturavam os colegas.

Muitos foram os curiosos de plantão que indagaram o velho contrabaixista sobre o conteúdo daquele enigma, mas os foras e desaforos dele primeiramente passaram a ter prazo de validade de uma parte do ensaio, mas acabaram por se intensificar consideravelmente. Porém, o medo de que o velhinho tivesse um piripaque no ensaio, deixou a curiosidade alheia com um modesto lote de perguntas no início do ensaio e o montante para o ensaio seguinte, quando a metralhadora de perguntas voltava a atacar Tibúrcio, que resmungava e, pasmem, agora – para desespero orquestral – voltava a ler o malfadado bilhete novamente, atiçando mais a cada dia os comentários e a bisbilhotice dos colegas.

E dia após dia – até que completou um ano -, o encardido bilhete ia e vinha do bolso para as mãos, das mãos para os olhos e voltava para o bolso, depois de ser dobrado pela enésima vez.

Tudo foi tentado para ludibriar o pobre velho e tentar pegar o mapa do tesouro. Derrubaram as partituras da estante dele, na expectativa de que ele, ao se abaixar para pegá-las, deixasse o bilhete cair, e nada…
Derrubaram água na camisa dele, “sem querer”, na hora do lanche, mas o velhinho foi mais do que rápido em salvar sua relíquia.
Fizeram aposta, bolão, etc., e o tempo passando e o bilhete passando perto do nariz de todos, que nada conseguiam fazer para saber o conteúdo do lindo.

Um dia, o tão receado momento enfim aconteceu, quando o Tibúrcio teve um piripaque estrimilicoso no início do ensaio e partiu dessa para orquestras melhores…
Os colegas aproveitaram esse momento único e voaram para o mais que desejado bolso do colega, que jazia no chão.
Uma mão mais afoita ganhou o troféu enquanto leu, com voz trôpega e embargada, o conteúdo do bilhete para os ouvidos consternados de todos: “mão esquerda: contrabaixo; mão direita: arco”.

Como já disse eu, Duda Pum-Pum-Pum Ronc-Ronc, não conheci o Tibúrcio, mas o contrabaixo dele agora é meu…

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Segredos Contrabaixísticos de Duda Pum-Pum-Pum Ronc-Ronc by Voila Marques is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas License.

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